Fonte: https://www.jcnet.com.br/Cultura/2019/05/marcio-abc-lanca-delacao-nesta-quintafeira.html
Após lançar seu sexto romance em São Paulo, onde trabalha atualmente, o jornalista e escritor Márcio ABC revê Bauru hoje, onde teve longa atuação profissional, para apresentar ao público "Delação": a noite de autógrafos será realizada a partir das 20h no Templo Bar.
Toda a narrativa é inspirada numa história real descoberta por acaso pelo autor em momento de intimidade com uma de suas protagonistas verdadeiras, conforme já divulgado. "Uma história que eu decidi, por muito tempo, apagar da minha mente", revela no texto "A vida real", apêndice do romance. Três décadas depois, a dolorosa história é reativada em meio aos reflexos da escandalosa política nacional.
A narração é conduzida por um jovem cineasta, que refaz os passos da época em que foi asfixiado pelo obscuro cotidiano familiar, quando o abuso que vitimava os três irmãos vinha de onde não se podia imaginar. Já adulto, o narrador busca exorcizar os fantasmas que assombraram a infância dele e dos irmãos e continuam a atormentá-los.
Mais: toda a trama é perpassada pela tensão resultante de uma delação premiada como tantas levadas a cabo durante investigações relacionadas a políticos e empresários brasileiros.
A 'REPRESA' ROMPE...
Para Joselma Noal, escritora e doutora em letras, "'Delação' trata da condição humana, que é sempre o assunto da literatura". No prefácio, ela avisa: "A história é impactante".
Já na contracapa do livro, o escritor e cartunista Óscar Fuchs compara as emoções derramadas no decorrer da obra como "uma represa que se rompe".
Márcio ABC estreou na literatura com "Parabala", em 2002. Na sequência, publicou "Desrumo" (2010), "Pater" (2012), "Na pele dos meninos"(2014) e "Estado bruto"(2018).
SERVIÇO
Márcio ABC lança "Delação" (Editora Kazuá - R$ 45): 16/5, hoje, das 20h às 23h, em noite de autógrafos no Templo Bar. Rua Benjamin Constant, 1-34, Centro. (14) 3223-3493.
'Experiências vividas, queira você ou não, fazem parte de suas paredes'
A pedido do JC, gente ligada à escrita elaborou perguntas a Márcio - que, por sua vez, recebeu apenas as questões e não os autores Agora, sim, indagadores e suas dúvidas são aqui "delatados".
Por que a história ficou décadas enclausurada no inconsciente?
João Correia Filho, repórter fotográfico
Márcio ABC: Talvez um pouco por falta de coragem, embora eu acredite que tudo tenha seu momento certo. Na época em que me foi contado o caso que serviu de inspiração para o livro eu tinha vinte e poucos anos, sem discernimento nem bagagem suficiente. Seja como for, experiências vividas, queira você ou não, fazem parte de suas paredes. Você é uma construção e os acontecimentos de sua vida, bons ou ruins, são tijolos. Cabe a você assentá-los bem para que suas paredes não desabem um dia. Às vezes, como nesse caso, é preciso tirar um tijolo mal colocado e assentá-lo novamente.
Por que resolveu agora escrever sobre isso em forma de romance?
Cris Deziró, escritora e professora
Márcio ABC: Acho que este momento da história do país, quando a opressão e o autoritarismo se mostram tão fortalecidos, é uma boa hora para tratarmos de temas espinhosos. Quando você vê um presidente negando a existência da ditadura num determinado período, quando você a mesma autoridade máxima de seu país negar um dos maiores flagelos da humanidade, que foi o nazismo, quando você vê tanta coisa inacreditável, fora de lugar, é uma boa hora para cutucar feridas da sociedade. Fazê-las sangrar, mesmo. Esse é o melhor remédio. Muita gente acha que não se deve mexer no passado. O livro fala bastante sobre esse aspecto que eu julgo um tanto covarde na vida nacional. É preciso haver culpa, sim. Uma nação sem culpa é uma nação de bobos alegres. Eu não quero tomar parte dessa ópera-bufa. Tento fazer o que está ao meu alcance. É o indivíduo, por suas ações, que muda a sociedade.
Quais são os eixos que conectam a história da família do protagonista com as delações premiadas da política recente?
Rafael Gallo, escritor
Márcio ABC: O drama do protagonista, que não consegue se livrar dos abusos sofridos na infância está situado no atual contexto que envolve as chamadas delações premiadas. O protagonista reflete muitas vezes, no decorrer da narrativa, também a respeito desse tema delicado, que é entregar o outro para salvar a si mesmo. Não vejo que isso seja tão simples. Às vezes penso que se por um lado as delações premiadas permitem obter importantes avanços em investigações, desde que devidamente apuradas e não simplesmente tomadas como verdades, ao mesmo tempo é um tipo de iniciativa que pode incentivar um comportamento condenável. O livro também se propõe a discutir esse aspecto complexo.
Qual foi a inspiração principal que te levou a escrever suas obras e por que você tomou gosto pela escrita?
Ana Maria Barbosa Machado, escritora
Márcio ABC: Tenho a impressão que vou construindo um barril de pólvora dentro de mim ao longo dos anos, seja por meio das experiências vividas e observadas, seja a partir da leitura. Aliás, acho que o gosto pela escrita surgiu no gosto adquirido pela leitura. Acho que para escrever é preciso ler. Não ler para escrever. Ler para viver. Essa é a base. Quanto à prática, embora eu seja jornalista, minha literatura é basicamente ficcional. Claro que há inserções relacionadas à realidade. Uma das minhas linhas de trabalho é situar meus romances dentro de um universo histórico palpável. Todos eles percorrem a vida nacional em diferentes momentos. "Delação" está cravado no momento atual. Porque embora o caso seja de três décadas atrás, nunca houve tanta notícia sobre abuso infantil. Cinco crianças são estupradas por dia, em média, na Grande São Paulo. Isso é estarrecedor! E, sim, acho que para escrever você precisa estar sufocado.
Geralmente escritores se deixam "contaminar" por seus personagens. Como foi sua convivência com as neuroses e revoltas deles?
Sidney Fernandes, escritor
Márcio ABC: Em 2010, quando publiquei "Desrumo", onde a linguagem do protagonista contraria certas regras gramaticais, alguém me perguntou por que o personagem escreve desse modo. Naturalmente, eu respondi "pergunte a ele". Na verdade, eu respeito muito os personagens. Às vezes eles são amedrontadores, em outras são simpáticos a mim. Mas na maior parte do tempo, são sanguessugas terríveis. Acho que o melhor é sempre tomar cuidado com eles. É relação delicada.
Márcio, grande abraço. Sucesso, você bem o merece Quando colocamos o ponto final, a história acabou. Aí começa outra: como o leitor vai reagir? Encanto? Tédio? Fascínio? Chatice? O texto pertence ao autor, mas o leitor não. Como você vivencia esse momento solitário do "e agora José? No caso... e agora Márcio?
Roberto Magalhães, professor e autor de obras didáticas e ficcionais
Márcio ABC: Acredito que, a partir do momento em que o livro é publicado, o texto também deixa de pertencer ao autor porque se transforma sob o olhar do leitor, passa a ser outro texto. E isso é excitante. Não posso imaginar uma escrita sem medo e ansiedade. Quando escrevo um romance, não sei para onde estou indo, não sei o que os personagens vão fazer de mim. É um medo necessário para o andamento do projeto. Os demais, que estão mais vinculados ao resultado propriamente dito, ou seja, ao livro que vai para as mãos do leitor, podem ser apaziguados. Hoje é comum observar que as grandes editoras estão mais preocupadas com os reflexos midiáticos que uma determinada publicação pode provocar. O que está por trás da obra importa mais do que a obra. Vejo pessoas que vão a um lançamento porque é na Livraria Cultura e porque lá encontrarão gente famosa. Mas nem sabem direito qual é o livro a ser lançado, que também não pretendem ler, mas ter em sua estante. Quando vejo essa pequena farsa que envolve interesses prioritariamente econômicos e um público afeito a futilidades, me entristeço com um país cada vez mais analfabeto em todos os sentidos, e isso me leva à expectativa de que meus livros cheguem a quem realmente se interesse por eles, e não por mim ou por qualquer coisa que seja alheia a eles, os livros.